Fórmula 1 volta até debaixo d’água
Uma olhada no cenário do início da temporada de Fórmula 1 pode levar os mais supersticiosos a pensar em mandinga: três das 10 equipes já anunciaram trocas de pilotos para um campeonato cujas dez primeiras etapas foram canceladas ou adiadas e o início das atividades pode acontecer sob chuva. Não bastasse tudo isso o GP da Áustria, domingo em Spielberg, marca uma nova fase na história da categoria: será o primeiro evento sem qualquer ligação oficial com Bernie Ecclestone, o inglês que durante as últimas cinco décadas consolidou a modalidade como um dos maiores eventos do planeta.
Atividade extremamente técnica a ponto de empregar o maior número de engenheiros por metro quadrado de autódromo, a F1 começa a viver na Áustria muito mais que o 71º campeonato mundial de sua história. Com restrições severas com relação às únicas pessoas admitidas no autódromo, a corrida em Spielberg terá que comprovar que o protocolo sanitário em prática é funcional; um resultado positivo dará sinal verde para as demais sete provas já confirmadas e facilitará a divulgação de outras etapas. Mais: se o trabalho não for prejudicado certamente haverá cortes permanentes no número de pessoas que cada equipe envia a cada GP. Estima-se que os gastos de viagens, estadias, alimentação, seguro e uniforme de cada integrante da equipe varie entre US$ 80 mil e US$ 100 mil por ano. Em época de vacas e calendário magros e entrada em vigor de limite de gastos em 2021 (US$ 145 milhões), o Covid-19 é um bode expiatório por excelência.
Nos boxes do circuito da Styria não faltarão novidades: a Honda, por exemplo, entregou motores de última geração para seus dois clientes, por acaso duas equipes que em última análise pertencem ao mesmo proprietário do autódromo, o bilionário austríaco Dietrich Mateschitz. A Renault também vem com melhoramentos desenvolvidos em computadores e a Brembo desenvolveu discos de freios dianteiros que possuem entre 800, 1.250 ou 1.480 furos para ajudar a dissipar o calor gerado nas freadas. Num fim de semana de temperaturas amenas para o verão austríaco deverá ser usada especificação média em conjunto com discos traseiros com 800 furos; estes últimos podem têm uma versão com 1.250 perfurações que, em todos os casos, podem ser vistas na secção que corresponde à banda de rodagem de um pneu.
Tecnicamente o asfalto local é um elemento que se espalha por um traçado liso em 4.218 metros de subidas, descidas, três freadas consideráveis e apenas uma curva de baixa velocidade nas montanhas da Styria, ao lado de um vale onde funciona um aeródromo militar. Uma volta em Spielberg dura pouco, entre 67 e 68 segundos, tempo comparável aos anotados em Interlagos. No que toca ao desgaste dos pneus – disponíveis em compostos duro, médio e macio – o ponto nevrálgico é o esforço nas frenagens; tração esforço lateral e carga aerodinâmica são outros pontos que demandam atenção para que se faça apenas uma troca nas 71 voltas da prova.
Três das cinco equipes principais já anunciaram mudanças importantes em suas formações para 2021, situação que terá impacto direto nas disputas desta temporada: a Ferrari optou por dispensar Sebastian Vettel e contratar Carlos Sainz Júnior, cujo lugar na McLaren será ocupado por Daniel Ricciardo, atualmente na Renault. Pode-se esperar boas performances do alemão, que correrá sem pressão, circunstância que representa perigo para o atual queridinho de Maranello, Charles Leclerc. McLaren e Renault já informaram claro que Sainz Jr e Ricciardo terão tratamento igual aos seus companheiros deste ano, respectivamente Lando Norris e Estebán Ocón. Vale a pena conferir. Mercedes e Red Bull ainda não bateram o martelo sobre a continuidade de Valtteri Bottas e Alex Albon: se o anglo-tailandês está perto de ser confirmado, o finlandês nem tanto.
Se este ano o mercado de pilotos foi movimentado de forma intensa e fora de época, o que dizer dos bastidores? Enquanto FIA, Liberty Media e pilotos como Lewis Hamilton e Daniel Ricciardo clamam por atitudes que contemplem a igualdade sem distinção de qualquer espécie, a Mercedes e Bernie Ecclestone tornaram-se trending topics neste início de semana. Como que a confirmar que seu discurso contra preconceitos de qualquer espécie, o time alemão optou por pintar de preto seus flechas de prata; já Bernie Ecclestone emitiu opiniões que bateram de frente com os discursos de Hamilton e da Liberty e acabou descobrindo que seu cargo de presidente de honra da F1 caducou em janeiro passado.
Coincidência ou não é a data na qual expirou seu período de quarentena pessoal: a venda os direitos comerciais da categoria para a empresa norte-americana, em 2017, garantiu a ele três anos de salários para ser o que ele mesmo chamou de “rainha da Inglaterra da F1”: tinha o título mas não mandava em coisa alguma. A partir de agora, Ecclestone só deverá ter acesso a algum circuito se algum amigo dono de equipe ou muito poderoso o convidar para assistir uma prova. Há controvérsias se alguém estaria disposto a isso correndo o risco de provocar Chase Carey, o CEO da Liberty Media, que é quem manda agora. Seu prestígio pode ser medido pelo empréstimo que a categoria conseguiu junto à holding controladora dessa empresa: US$ 2,9 bilhões foram liberados para enfrentar a queda de receita deste ano e ter fôlego para enfrentar 2021 e pagamentos que só começam em janeiro de 2022.
Os circuitos de Mugello, na Itália, e Portimão, em Portugal, deverão ser confirmados nos próximos dias como outras duas etapas desta temporada. Um movimento para incluir Ímola como sede de uma terceira prova no território italiano nessa lista chegou a ser ensaiado, mas ontem a prefeitura da cidade praticamente encerrou as negociações para levar a F1 de volta ao Autódromo Enzo e Dino Ferrari. Ao interditar quaisquer atividades nessa pista durante os meses de julho e agosto, inclusive eventos que já estavam confirmados e anunciados, causou revolta na região que, nesta época do ano, recebe um bom número de turistas. O GP do Brasil, previsto para 15 de novembro, ainda não foi confirmado. Caso isso aconteça é possível que a data seja antecipada em uma semana. A relação cada vez mais conturbada entre a Liberty Media e Bernie Ecclestone, porém, colabora para que o país possa ficar fora do calendário deste ano.