O kartismo brasileiro viveu na última sexta-feira (17) – não
por culpa dele – um de seus momentos mais tristes e revoltantes de sua
história. Pressionada pelas fábricas de chassis europeias e sem uma presidência
que efetivamente exerça seu poder, a Federação Internacional de Automobilismo
(FIA) cancelou de forma unilateral a realização do Campeonato Mundial FIA
Karting no Brasil, evento que havia sido anunciado pela hoje não tão “entidade
máxima” em 4 de outubro de 2019.
Vamos lembrar de quanta “água passou por baixo da ponte”?
Principal arquiteto da vinda do Mundial para o Brasil, Ricardo Gracia – dono do
Kartódromo Speed Park – teve forte apoio de Giovanni Guerra, na época delegado
da CBA na CIK/FIA e hoje presidente da CBA – e de Felipe Massa, que preside a
FIA Karting, novo nome da Comissão Internacional de Kart.
Inúmeras viagens para a Europa e inúmeras reuniões com
presidentes das ASN´s – as confederações nacionais de automobilismo de cada
país – fizeram parte do trabalho para que o Mundial fosse realizado no Brasil
no final de 2020. Para resumir nossa conversa e não perdermos muito tempo, devo
lembrar que a pandemia de Covid-19 forçou o adiamento do campeonato para 2021 e
a edição de 2020 foi para Portugal, em novembro, época em que aquele país ainda
não tinha pessoas vacinadas e apresentava uma média diária de mais de 6 mil
novos casos.
Em 24 de junho de 2020 o Mundial FIA Karting foi finalmente reconfirmado
para 2021 no Brasil, sempre no Speed Park. Era um momento em que éramos felizes
e não sabíamos de tanta decepção que viria pela frente.
Pois bem. Se aqui no Brasil estávamos felizes com a notícia,
não podíamos dizer que o mesmo sentimento era vivido na Europa. Descontentes
com a confirmação de que deveriam vir para o Brasil, as fábricas europeias
iniciaram um verdadeiro boicote. Elas não levaram em conta que, um campeonato,
para ter o nome de Mundial, teria que ter em sua história pelo menos algumas
saídas da Europa para não ser “apenas” um Campeonato Europeu com outro nome.
Enquanto isso, atendendo exigências da FIA, aqui no Brasil o
Kartódromo Speed Park passava por algumas adequações e Ricardo Gracia dava
andamento em seus projetos – que já não eram mais projetos e sim realidade – de
fechar patrocínios para o grande evento.
Com isso, Gracia oferecia algo inusitado às fábricas,
pilotos e equipes europeias. Ele derrubava argumentações dos fabricantes e
equipes ao oferecer – sem custo algum – transporte de todo equipamento que
seria usado no Mundial por via aérea da Itália para o Brasil e o consequente
retorno, translado do aeroporto de Araçatuba ou Rio Preto de todos os
participantes até Birigui, cinco diárias de hospedagem e alimentação completa
para pilotos e mecânicos e vários outros benefícios. Sem custo, repito.
Em 9 de agosto passado, ele e integrantes do Speed Park
reuniram-se no Aeroporto de Viracopos, em Campinas, com representantes das
gerências Comercial e Operações de Carga do aeroporto, Receita Federal do
Brasil, Royal Cargo (agente de cargas) e Rio Port (despachante aduaneiro) para
agilizar o desembaraço dos equipamentos na chegada ao Brasil.
Enquanto isso, Jean Todt – presidente da FIA – afirmava em 2
de agosto “apoio total à CBA, Ricardo Gracia e Speed Park para sediar o
Campeonato Mundial OK e OK Junior em Birigui, no Brasil, no dia 5 de dezembro
próximo”. Mal sabíamos o quanto essa afirmação nunca seria obedecida – por ele
mesmo.
Ah sim, não posso deixar de citar as inúmeras confirmações
de que o Mundial seria aqui – abril, junho, julho, agosto e, a mais recente, no
início de setembro, quando Willibald Zöttl, Inspetor Técnico de Segurança da
FIA, esteve pela terceira vez no Speed Park para vistoriar e liberar uma obra
de adequação que custou cerca de R$ 300 mil em uma pista que, diga-se de
passagem, já tinha homologação Grupo 1 (categorias KF1 e KZ1) e Grupo 2 (OK,
KF2, OK Junior, KF3, KF4 e KZ2) sob nº 1060 da Comissão Internacional de Kart,
datada de 22/01/2019 e assinada por Franz Schreiner, também inspetor da FIA.
A partir daí, algumas pistas nos foram dadas, mas não nos
apercebemos do que viria. Antes marcado para 20 de setembro, o encerramento das
inscrições foi antecipado para o dia 15. Qual seria o objetivo? Dar menos tempo
para que o Mundial no Brasil chegasse ao número mínimo de inscritos, 20 pilotos
por categoria?
A primeira “tentativa” não deu certo e antes do dia 15 de
setembro o Portal Kart Motor, através da jornalista Vitória Drehmer, anunciava uma lista extraoficial com bem mais que
o número mínimo, quase 30 pilotos por categoria, números confirmados pela CBA.
Mais do que isso, a lista não era apenas de pilotos brasileiros ou
sul-americanos, pois a fabricante de chassis Praga, da República Tcheca – ou
seja, fora do eixo italiano –, “furara” o bloqueio e inscrevera o francês
Arthur Rogeon e o italiano Flavio Olivieri.
Bem, dever cumprido e agora era hora de comemorar, afinal
nada mais poderia tirar o Mundial do Brasil. Lógico, tínhamos atendido todas as
exigências e Todt já havia afirmado que o Mundial seria no Brasil.
Quanto engano!!! Na última sexta-feira, dia 17, às 11h06,
era o próprio Ricardo Gracia quem informava o Portal Kart Motor – através de um
link no site da FIA – de que o Mundial não seria no Brasil e iria para a
Espanha. E qual o motivo para o cancelamento, alegado por Felipe Massa em sua
declaração oficial como presidente da FIA Karting? A pandemia global de
Covid-19. Sim, a mesma pandemia de Covid-19 que em novembro já não existirá em
São Paulo, pelo menos em Interlagos, já que a própria FIA realizará o GP do
Brasil de Fórmula 1 com liberação total de público. Não custa lembrar: o
Mundial seria em dezembro.
Ah, mas na Espanha não tem Covid!!! Tem sim e vamos aos
números, obtidos em 17 de setembro.
Habitantes
São Paulo – 47 milhões
Espanha – 46 milhões
Média móvel de contaminação
São Paulo – 3.570 (últimos 14 dias)
Espanha – 3.222 (últimos 7 dias)
Para “fechar a conta”, o anúncio de que o Mundial seria na
Espanha e com data definida: dias 29 a 31 de outubro. Ou seja, exatos 42 dias
após o anúncio do cancelamento no Brasil. Então, a primeira pergunta: como é
possível organizar um Mundial em 42 dias, a não ser que já se saiba muito antes
que esse evento virá?
Ah, eu já ia esquecendo: nosso Mundial também seria de 29 a
31 de outubro, mas a FIA adiou para dezembro. E agora voltou para outubro. Mais
uma evidência de que tudo provavelmente estava armado, já que os espanhóis não precisariam de
tanto tempo para se organizar pois já sabiam que seriam sede do evento?
Vamos voltar à questão dos inscritos? Pois bem. Não seria
mais fácil cancelar o Mundial se não tivesse chegado ao número máximo de
inscritos? Sim, e para isso a data de encerramento foi antecipada em cinco
dias. Bem, agora só resta anunciar “o cancelamento do Mundial por falta de
inscritos”. Isso deixaria a FIA bastante confortável e as críticas mundiais
recairiam sobre o kartismo brasileiro, que “não teve estrutura nem para
obedecer a um critério básico”.
Aí entra um novo capítulo, aquele em que os brasileiros
fariam de tudo para ter seu Mundial. Com uma incrível mobilização – e mostrando
para a FIA que somos muito maiores do que ela pensa –, chegamos sim ao número
exigido, como já falamos acima. Tínhamos, só de brasileiros, 23 na OK e 26 na
OK Júnior, um total de 49 pilotos.
Vamos a um dado interessante? No último Mundial, em Portugal,
- na Europa, ou seja, sem sair “de casa” – os italianos reuniram um total de 17
pilotos entre 176 inscritos. Franceses? 8. E os portugueses, pilotos do país
sede? 9.
A intenção da FIA não teve efeito e restou à entidade – ou
aos fabricantes europeus de chassis? – anunciar o cancelamento de forma
unilateral, sem nem mesmo consultar aquele que já gastara uma fortuna para
realizar um projeto, Ricardo Gracia.
Me parece claro, pelo dito acima, que a intenção de não
realizar o Mundial no Brasil era antiga. Outra pergunta então: porque deixar
tudo ir rolando, sem pensar nos inúmeros prejuízos que todos tiveram, desde a
necessidade de cancelar uma passagem aérea até os enormes investimentos do
Speed Park – que podem chegar a cerca de 1 milhão de euros, já que muitos valores
já pagos e que seriam bancados pelos patrocinadores não mais serão, afinal não
existe mais nada para patrocinar –, passando pelos gastos de pilotos, equipes e
preparadores com a compra de chassis, motores, idas à Birigui para treinos e
corridas?
Como ficam as inscrições pagas – 760 euros, ou cerca de R$
4500,00 – alguns dias antes do anúncio, valores que não precisavam ter sido
depositados uma vez que o cancelamento provavelmente era sabido pela FIA e
pelas fábricas. Quando e de que forma esse valor será devolvido? E os valores
pagos pela Carteira Internacional?
Nos resta esperar por um pronunciamento muito mais
esclarecedor de Felipe Massa e de Jean Todt do que uma simples frase culpando
uma pandemia que todos sabemos que não cabe mais ser culpada. Infelizmente,
deveremos esperar sentados.
Por fim, devemos tirar lições desta grande traição que a FIA
nos fez, tratando o kartismo e os kartistas brasileiros como os grandes
palhaços de seu lamentável circo. Que venham as eleições para – tomara – termos
presidentes que realmente mandem na FIA e na FIA Karting.